Todo ser humano, após a queda espiritual, sofre. Sofre porque houve um afastamento da relação direta, permanente e exclusiva com o Criador. Ficou um “buraco” espiritual em nossa alma, em nossa pessoa. Isso promoveu muitas outras desgraças e, em especial, a perturbação do relacionamento afetivo ideal na educação de filhos. Resultado: nunca mais houve infância normal, nunca mais houve crianças cem por cento normais. Todos, pretos, brancos, ricos, pobres, religiosos, não religiosos, temos carências afetivas. Uns mais, outros menos. Uns com consciência dela, outros com inconsciência.

 

Trazemos essa carência para a vida adulta e tentamos resolvê-la, na maioria das vezes, inconscientemente, seja no trabalho, no casamento, no cuidado com os filhos (superproteção, dependência, etc.), no namoro, nas amizades, etc.

 

Alguns, não suportando a dor dessa carência, se drogam. É importante dizer, a “droga” pode ser muita coisa, além do álcool, cocaína, heroína, tranqüilizantes, anfetaminas, etc. Ela pode ser o trabalho, o sexo, a comida, a estética corporal, o dinheiro e mesmo o “amor” (dependência afetiva).

 

Numa relação conjugal é muito comum haver desavenças, desencontros, justamente porque cada um, marido e mulher, ao longo dos anos de convívio, pode não suportar o vazio interior que trouxe para dentro do casamento, acrescido de dificuldades que o cônjuge realmente possua (e que pode melhorar, ou não) e que produz frustração. Estes dois fatores (carências trazidas da infância e problemas afetivos próprios do relacionamento atual) produzem a dor. Se você colocar junto disto aquela dor originada do “buraco” espiritual, pode ficar algo bem doloroso, quase ou mesmo insuportável.

 

Com isso, uma pessoa pode pensar em separação, em traição, pode ficar brigando o tempo todo no relacionamento conjugal sempre achando que é o outro o culpado de todo o sofrimento. Não consegue separar o que é sua dor, algo seu que o outro não tem nada a ver com isso, com o que é realmente fruto de problemas do casamento, solucionáveis ou não. Em verdade, esta separação não é fácil de ser percebida e identificada.

 

Quando um casal, diante de sofrimentos conjugais (desânimo, perda do interesse sexual, perda do romance, da sensação de amor, etc.) não enxerga que há uma diferença entre problemas pessoais e os próprios do casal, a tendência é sempre culpar o outro como o único responsável pela sua dor e atacar, se isolar, trair, separar-se precipitadamente sem buscar uma solução.

 

Quando há o que costumo chamar de “honestidade emocional” (sem ela não pode haver saúde mental para ninguém!), ou seja, a pessoa admitir que parte de sua dor pode ser mesmo algo muito pessoal e não culpa do cônjuge, existe possibilidade de melhora, de ajustamento, de felicidade, tanto internamente (ela com ela mesma), quanto externamente, ou seja, entre ela e o cônjuge.

 

Mas e se a pessoa racionaliza (usa argumentos consigo mesma, muito parciais e injustos, às vezes, para justificar atitudes que toma na vida sem ser honesta emocionalmente, sem admitir toda a verdade) culpando somente o outro como causador da sua dor emocional, ela terá um longo caminho para conseguir ser feliz e ter paz interior. A racionalização que “justifica” determinada conduta pode até produzir temporária e superficialmente uma sensação de que o que ela faz está certo. Mas se trata de algo superficial porque na raiz a verdade é outra ou envolve outras questões que a pessoa, para acomodar-se na sua conduta, não quer considerar. Ela pode dizer (racionalizar) assim: “Já que essa pessoa me fez sofrer assim e assim, então eu parto para essa atitude ‘x’ ”.  Só que essa atitude “x” é realizada sem a resolução adequada do problema que causava ou causa a dor emocional. Por isso, ela será de “solução” também temporária, porque a dor emocional não resolvida com honestidade emocional voltará, mais cedo ou mais tarde, e poderá ser mais dolorosa ainda, caso a pessoa não fuja de novo da verdade interior com novas racionalizações. Se ela faz isso, torna-se cada vez mais alienada. Um joguete nas mãos da sua própria mente confusa.

 

Lidar com nossa dor emocional de frente, usando a verdade, sendo honesta, emocionalmente falando não é fácil. É muito mais fácil se “drogar” com os vários tipos de droga citados acima. Parece que dói menos. Mas, dói menos?

 

Há alguém ideal para mim? Há alguém que possa preencher toda a minha necessidade afetiva nessa vida? Você pode se casar com uma pessoa que é ativa para trabalhar, que produz conforto material, segurança financeira, mas faltar manifestações afetivas diretas (não via “coisas”). Ou pode ter alguém que é muito afetivo, sensual, ótimo parceiro sexual, mas não consegue prover segurança material. Pode ter alguém que por um tempo parece preencher tudo o que você queria e desejava de um ser humano como cônjuge, mas em algum momento do relacionamento cada um vai precisar ser honesto afetivamente e deixar aparecer suas limitações como ser humano, que pode ser um gênio explosivo, um caráter controlador, manipulador, feliz e carinhoso quando há sexo, mas frio e irritado quando você quer carinho sem sexo, dependente de carinho tornando-se sufocante e controlador, etc.

 

Em algum momento da vida, para ser feliz, cada ser humano precisa aprender a lidar com suas próprias limitações afetivas e comportamentais. Precisa entender que é parcial, não é deus, não pode ser tudo para o outro o tempo todo, não pode ter do outro tudo o que quer o tempo todo. Para algumas pessoas isso é muito insuportável, daí ela se droga, com droga mesmo, lícita ou ilícita, ou com o que escrevi acima. Se drogar neste sentido é como dizer para si mesmo: “Não aceito essa realidade. Não aceito que não posso ter tudo o que queria. Deve existir alguém que pode me dar tudo o que quero. Alguém perfeito. Ou algo perfeito que me faça sentir sempre para cima.

 

Parece que o caminho para a paz e a felicidade vai pela honestidade emocional, comportamental, espiritual. Ou seja, reconhecer que parte de meu “buraco” é algo meu mesmo e não culpa do cônjuge. Reconhecer também, que parte dessa dor pode ser realmente vinculada com uma frustração no relacionamento com meu cônjuge, mas que para solucioná-la preciso procurar caminhos construtivos de melhora. Se procuro um caminho destrutivo, como poderá melhorar minha dor? Não piorará até?!

 

Por isso, estando casado com uma pessoa que não completa você, é importante perguntar-se: “Não completa em quê?” “Já falei sobre isso com ele (a)?” “Procurei soluções construtivas?” “Tive honestidade emocional dizendo a verdade da minha dor emocional, ou somente ataquei a outra pessoa por causa dessa minha dor me ‘esquecendo’ (ou nem considerando!) que ela não deveria ser toda jogada em cima do outro?

 

Enfim, há um bom caminho a ser percorrido na busca das verdades emocionais pessoais, individuais, para se ser feliz no casamento e, primeiro de tudo, ser feliz consigo mesmo. Se você se desvia desse caminho e procura – vou repetir – caminhos alternativos destrutivos, acumula dor, piora a dor, adia o ter de lidar com a dor que, inevitavelmente, temos um dia de encará-la. Que dor? A dor das perdas afetivas do passado anterior ao casamento e, algo mais profundo, a dor espiritual fruto do rompimento da relação ideal que havia com o Criador.

 

Precisamos ter a coragem e a decisão de tomar o caminho construtivo. Nele há dor evidentemente, porque nossas fantasias de uma relação ideal desabam. O sexo acaba “enjoando” porque ele nunca substitui o afeto maduro e ético (seja numa relação conjugal ou extraconjugal). Sexo é a parte mais fácil de um relacionamento! A droga não mais produz aquele “barato” (ocorre a tolerância, ou seja, necessidade de maiores dosagens para produzir os mesmos efeitos, o que produz a destruição do organismo). O trabalho, usado como droga, cansa e esgota. E assim por diante.

 

Mas a falência da relação ideal não é o mesmo que falência de uma possibilidade de um relacionamento marido-mulher agradável! Parece que é justamente o contrário! Ou seja, quando se pode lidar construtivamente com a perda do ideal é que o real pode se tornar bom, agradável e até feliz. O amor surge, apesar do não ideal. Ou será que o amor maduro entre um homem e uma mulher somente pode existir no Paraíso?

 

Não creio nisso. Creio que um casal, vivendo um relacionamento ético, com honestidade afetiva, consciente de suas carências pessoais, pode aprender a ser feliz, a proporcionar um clima de paz e satisfação emocional entre ambos. Para se conseguir isso cada um precisará fazer todo o possível para manter a afetividade entre o casal. O amor precisa dominar. Não o sexo, não o dinheiro, não outros bens materiais, não a posse do outro, não a dependência doentia. Mas sim o amor, que significa respeito pelos limites do outro, manutenção de carinho verbalizado e físico (toques, sem necessariamente pender para o sexo), diálogo aberto e freqüente, respeito pelos sentimentos um do outro, saber ouvir, saber se calar quando o outro quer ficar quieto, saber participar com alegria de algo de que o outro gosta, e tantas outras coisas. Mas, acima de tudo, é preciso manter o afeto. Podemos manter o afeto gostoso quando desabamos da idealização. Porque o amor não está na idealização. Ficar na idealização impede você de fazer o que pode, porque você pode ficar tentando ser ou fazer o que não pode (pelo menos o tempo todo), o que o esgotará em algum momento (daí você vai mostrar seu lado não-ideal para o outro!) e produzirá raiva porque ocorrerá o mesmo com o outro! Ou seja, chegará o momento de aparecer no outro a realidade da limitação dele ser perfeito.

 

A idealização é um sonho. E a pessoa que está com você, ao seu lado, é uma realidade. Tem virtudes e defeitos. Somos assim! Todos! Claro que alguns defeitos podem e precisam ser melhorados. Na busca dessa melhora pessoal, da auto-superação de nossos defeitos há que se percorrer o caminho construtivo aonde o amor pode brotar, passo a passo, momento após momento, e, assim, a afetividade pode ser mantida entre o casal. É essa afetividade que dá colorido à vida, ao casamento, e condições de se lidar com o não ideal, tanto seu, quanto do outro. Qualquer outro caminho é enganador, frustrante, e causa mais dor.

 

Há alguém que é ideal para mim? Há sim! É aquela pessoa com quem você pode construir um relacionamento ético, fiel, honesto, com o compromisso de honestidade emocional como explicada anteriormente, relacionamento este no qual você prioriza a busca do crescimento espiritual e a manutenção da afetividade, apesar do fato de que nenhum vai ser ideal para o outro.

Cesar Vasconcellos de Souza

médico psiquiatra

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